Por vezes os órgãos da Administração Pública usualmente exigem como requisito de habilitação em editais de procedimentos licitatórios que os concorrentes apresentem declaração emitida pelo fabricante do bem, informando que estão autorizados a comercializar, instalar e dar suporte aos equipamentos licitados.
Examina-se, nessa oportunidade, com base na legislação e nos entendimentos do Tribunal de Contas da União – TCU, os contornos que envolvem a referida exigência, sob a ótica de garantia do cumprimento das obrigações contratuais e do caráter competitivo do certame.
Os órgãos de controle externo debatem sobre o tema frequentemente, questionando a ausência de justificativa para a inclusão nos editais de exigências que acabam por afastar a participação de licitantes.
Objetivo da licitação e limites para a qualificação técnica
A licitação objetiva permitir que a Administração contrate aqueles que reúnam condições necessárias para satisfação do interesse público, levando em consideração principalmente aspectos relacionados a capacidades técnica e econômico-financeira das empresas, qualidade do serviço e valor do objeto.
O art. 37, inc. XXI, da Constituição[1] estatui que na contração de obras, serviços, compras e alienações mediante processo licitatório somente deve ser exigida qualificação técnica indispensável à garantia do cumprimento das obrigações.
O art. 30, inc. II, da Lei nº 8.666/1993[2] estabelece que a qualificação técnica se limita à comprovação de aptidão para desempenho de atividade compatível com o objeto da licitação. O art. 67 da Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações) segue a mesma métrica:
Art. 67. A documentação relativa à qualificação técnico-profissional e técnico-operacional será restrita a:
I – apresentação de profissional, devidamente registrado no conselho profissional competente, quando for o caso, detentor de atestado de responsabilidade técnica por execução de obra ou serviço de características semelhantes, para fins de contratação;
II – certidões ou atestados, regularmente emitidos pelo conselho profissional competente, quando for o caso, que demonstrem capacidade operacional na execução de serviços similares de complexidade tecnológica e operacional equivalente ou superior, bem como documentos comprobatórios emitidos na forma do § 3º do art. 88 desta Lei;
III – indicação do pessoal técnico, das instalações e do aparelhamento adequados e disponíveis para a realização do objeto da licitação, bem como da qualificação de cada membro da equipe técnica que se responsabilizará pelos trabalhos;
IV – prova do atendimento de requisitos previstos em lei especial, quando for o caso;
V – registro ou inscrição na entidade profissional competente, quando for o caso;
VI – declaração de que o licitante tomou conhecimento de todas as informações e das condições locais para o cumprimento das obrigações objeto da licitação.
Dessa forma, por lei, os critérios estabelecidos em procedimentos licitatórios para qualificação técnica devem se ater unicamente ao propósito de selecionar empresa que tenha condições necessárias para realizar o empreendimento licitado.
Exigência de declaração do fabricante para habilitação de licitante
Os Tribunais de Contas consideram exigências como declaração do fabricante ou carta de solidariedade restritivas por violação aos princípios da isonomia e da competitividade entre os licitantes, além de configurar descumprimento ao propósito de seleção da proposta mais vantajosa para a Administração.
A solicitação desse tipo de declaração deixa ao arbítrio do fabricante a indicação de quais representantes poderão participar do certame, excluindo indevidamente possíveis concorrentes.[3] O TCU se manifestou sobre o assunto, entendendo pela ilegalidade da sistemática:
1.8.2. Dar ciência ao Ministério da Saúde, com fulcro no art. 7º da Resolução-TCU 265/2014, acerca das seguintes impropriedades verificadas no Pregão Eletrônico 14/2017, para que sejam adotadas medidas internas com vistas a prevenção de ocorrências semelhantes:
1.8.2.1. inserção indevida de exigência de apresentação de documentos das fabricantes, como condição de habilitação técnica, de que seus produtos atendem aos requisitos constantes do instrumento convocatório, por extrapolar o rol taxativo constante dos arts. 27 a 31 da Lei 8.666/1993, conforme a jurisprudência deste Tribunal.[4]
Nesse mesmo sentido, a Corte de Contas já havia se posicionado consolidando o entendimento de que é ilegal a exigência de documentos dos fabricantes, como condição de habilitação de licitante:
Conforme jurisprudência desta Corte, a exigência de declaração do fabricante, carta de solidariedade, ou credenciamento, como condição para habilitação de licitante, carece de amparo legal, por extrapolar o que determinam os arts. 27 a 31, da Lei nº 8.666/93, e 14 do Decreto nº 5.450/2005.[5]
“Reitera-se que não se coaduna com a jurisprudência desta Corte a exigência de declaração do fabricante, carta de solidariedade, ou credenciamento, ou qual seja o nome que se dê à exigência de se apresentar carta do fabricante, como condição para habilitação de licitante, por carecer de amparo legal e ferir o princípio da isonomia entre os licitantes”.[6]
A inclusão no edital da exigência de declaração de fabricante somente será possível, de forma excepcional, desde que o órgão comprove que a medida será necessária à execução do objeto contratual, demonstrando a inequívoca motivação técnica no processo administrativo que embasa a licitação.[7]
Exigência de declaração para a assinatura do contrato
Em certas ocasiões, surgem editais que solicitam a apresentação da declaração do fabricante apenas na oportunidade de assinatura do contrato. Ocorre que tal exigência também atenta contra a legalidade, pois a alteração do momento de apresentação do documento não descaracteriza a ofensa à isonomia, à ampla competividade e à seleção da proposta mais vantajosa. A Corte de Contas também possui orientação nesse sentido:
1.7.1.1. a exigência de carta de solidariedade de fabricante, ainda que para contratação, não é admitida por essa Corte de Contas, por sujeição dos interesses da Administração Pública à iniciativa privada.[8]
Dessa forma, em regra, tem-se por ilegal a exigência de apresentação de declaração de fabricante, por parte dos licitantes, tanto na fase de habilitação como na oportunidade de assinatura do contrato.
Análise LCT
Conclui-se que, como regra, os órgãos e entidades da Administração Pública não poderão exigir nos editais a apresentação de declaração ou carta de fabricante, seguindo assim o entendimento do TCU e respeitando os princípios da isonomia e da competitividade entre os licitantes, permitindo a participação de licitantes que não possuam tais documentos e, com isso, respeitando o primado da seleção da proposta mais vantajosa para a Administração.
Em casos excepcionais, desde que devidamente justificado de forma expressa, a exigência de declaração do fabricante poderá ser aceita, quando se revelar necessária à execução do objeto contratual, a exemplo de serviços que possuem prazo vinculado de garantia.
Importante destacar que outras exigências, legalmente previstas, podem ser utilizadas para assegurar o cumprimento das obrigações pactuadas, tais como pontuação diferenciada em licitações do tipo técnica e preço, exigência de garantia para execução contratual, multa contratual[9], a cobrança de amostra ou prova de conceito na fase de aceitação da licitação[10] ou ainda a exigência de atestados de capacidade técnica[11] dos licitantes.
[1] Constituição Federal de 1988: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (…) XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”.
[2] BRASIL. Lei nº 8.666/1993, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Diário Oficial da União [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 22 jun. 1993. “Art. 30. A documentação relativa à qualificação técnica limitar-se-á a: […] II – comprovação de aptidão para desempenho de atividade pertinente e compatível em características, quantidades e prazos com o objeto da licitação, e indicação das instalações e do aparelhamento e do pessoal técnico adequados e disponíveis para a realização do objeto da licitação, bem como da qualificação de cada um dos membros da equipe técnica que se responsabilizará pelos trabalhos.
[3] Nesse sentido, as seguintes decisões: Decisão nº 486/2000 e Acórdãos nº 808/2003, 1670/2003, 1676/2005, 423/2007, 539/2007, 1729/2008, 2056/2008, do Plenário; 2404/2009, da 2ª Câmara; e 3003/2018, do Plenário.
[4] Acórdão nº 3003/2018 – Plenário.
[5] Acórdão nº 1805/2015 – Plenário.
[6] Acórdão nº 224/2020 – Plenário.
[7] A exigência de declarações ou autorizações por parte do fabricante de softwares para que empresas possam participar de procedimentos licitatórios, a exceção de casos em que houver inequívoca motivação de ordem técnica devidamente justificada, contraria o disposto no art. 3º, § 1º, inciso I, da Lei 8.666/1993 – Acórdão nº 8.696/2017 – 1ª Câmara; Acórdão nº 1.462/2010 – Plenário.
[8] Acórdão nº 272/2018 – 1ª Câmara.
[9] Acórdão nº 1805/2015 – Plenário: […] Existem outros meios para assegurar o cumprimento das obrigações pactuadas, tais como pontuação diferenciada em licitações do tipo técnica e preço, exigência de garantia para execução contratual, ou ainda multa contratual.
[10] Acórdão nº 2059/2017 – Plenário: Provas de conceito não devem ser utilizadas na fase interna da licitação (planejamento da contratação), uma vez que não se prestam a escolher solução de TI e a elaborar requisitos técnicos, mas a avaliar, na fase externa, se a ferramenta ofertada no certame atende as especificações técnicas definidas no projeto básico ou no termo de referência.
[11]Acórdão nº 464/2014 – 1ª Câmara: conforme orientação da Portaria-Segecex 13/2011, dar ciência ao Senado Federal de que a ausência de menção expressa no instrumento convocatório aos serviços a serem comprovados mediante apresentação de Atestados de Capacidade Técnica pode levar empresas sem a aptidão necessária a participar do certame, conforme se verificou no Pregão Eletrônico 70/2013.