O art. 37, inc. XXI, da Constituição Federal dispõe sobre a igualdade de condições a todos os concorrentes nas licitações públicas[1] e, em isonomia material, também disciplina que serão conferidos tratamentos favorecidos para as empresas de pequeno porte, definidos por meio de lei complementar.[2]
A Lei nº 8.666/1993, anteriormente, dispôs em termos gerais que nas licitações deve ser privilegiado o tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte.[3]
A Lei Complementar nº 123/2006, ao instituir o Estatuto Nacional das Microempresas – ME e Empresas de Pequeno Porte – EPP,[4] entre outros benefícios, garantiu a preferência de contratação para tais pessoas jurídicas nas licitações com valores estimados de até R$ 4.800.000,00 (quatro milhões e oitocentos mil reais).
Com o advento da Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações) houve a mudança da regra para a aplicabilidade do tratamento diferenciado para microempresa ou empresa de pequeno porte, conforme explanado a seguir.
O art. 3º da Lei Complementar nº 123/2006 definiu que a sociedade empresária, a sociedade simples, a empresa individual de responsabilidade limitada e o empresário serão considerados microempresa quando auferirem, em cada ano-calendário, receita bruta igual ou inferior a R$ 360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais); ou empresa de pequeno porte quando a receita bruta for superior a R$ 360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais) até R$ 4.800.000,00 (quatro milhões e oitocentos mil reais).
Os §§ 9º e 9º-A do art. 3º da Lei Complementar 123/2006 dispõem que as empresas devem se desenquadrar como microempresa ou empresa de pequeno porte,[5] no mês seguinte ao excesso do limite de faturamento, sendo que, se o excesso de receita bruta não for superior a 20%, poderá ocorrer no ano-calendário subsequente.
Já o § 3º do art. 3º da Lei Complementar disciplina que os contratos já firmados pela empresa não serão afetados pelo desenquadramento.[6]
O Tribunal de Contas da União – TCU reforça o entendimento de que o desenquadramento deve ser pautado pelo excesso ou não dos 20% (vinte por cento) de faturamento:
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- Independentemente da periodicidade da escrituração contábil, a empresa pretendente a usufruir do regime favorecido de participação nas licitações de que trata a Lei Complementar n. 123/2006 tem o ônus de manter o controle constante do seu faturamento e atualizar com fidedignidade seus dados constantes em sistemas informatizados da administração pública.
- Dizer que a escrituração do balanço, de periodicidade anual, seria o marco para a constatação do excesso de receita e da perda da condição de empresa de pequeno porte significaria tornar letra morta o § 9ºdo art. 3ºda Lei Complementar n. 123/2006, que impõe o desenquadramento da empresa no mês seguinte àquele em que houver excesso de faturamento, e também ao § 9ºA, que condiciona a prorrogação da perda da condição de ME ou EPP para o ano-calendário posterior apenas na hipótese de o excesso de receita bruta situar-se na faixa de 20%.[7]
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A Corte de Contas considera, para efeito de enquadramento na definição de microempresa ou empresa de pequeno porte, a receita bruta referente à atividade efetivamente exercida como fato gerador dos tributos, não importando para tanto a natureza jurídica da empresa ou a descrição de suas atividades no cadastro de pessoas jurídicas.[8]
O TCU[9] ainda entende que, havendo dúvidas sobre o enquadramento de licitante na condição de microempresa ou de empresa de pequeno porte, o órgão ou entidade deverá, além de realizar as pesquisas pertinentes nos sistemas de pagamento da Administração, solicitar à licitante a apresentação dos documentos contábeis aptos a demonstrar a correção e a veracidade de sua declaração de qualificação como microempresa ou empresa de pequeno porte para fins de usufruto dos benefícios da Lei Complementar nº 123/2006.
A Lei nº 14.133/2021, apesar de reforçar a necessidade de aplicação da Lei Complementar nº 123/2006 pela Administração Pública,[10] dispõe as situações em que os benefícios para as microempresas e empresas de pequeno porte não serão aplicados.
De acordo com o art. 4º, § 1º, da Lei nº 14.133/2021, não se aplicam os benefícios previstos na Lei Complementar: no caso de licitação para aquisição de bens ou contratação de serviços em geral, ao item cujo valor estimado for superior à receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte; e no caso de contratação de obras e serviços de engenharia, às licitações cujo valor estimado for superior à receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte.
Observem-se os esclarecimentos de Marçal Justen Filho nesse sentido de que a Nova Lei de Licitações dirimiu a controvérsia sobre contratações de valor superior ao limite de enquadramento na condição de microempresa e empresa de pequeno porte:
A Lei nº 14.133/2021 determinou a não aplicação do regime preferencial em licitações e contratações cujo valor individual for superior ao limite máximo previsto para enquadramento como empresa de pequeno porte. Essa regra se aplica tanto para aquisição de bens ou serviços em geral como para obras e serviços de engenharia.
Essa determinação afasta o entendimento de que a microempresa ou empresa de pequeno porte poderá auferir os benefícios do regime diferenciado relativamente a contratação específica cujo valor supere o limite de enquadramento e de que tais benefícios deixariam de ser reconhecidos apenas em relação a futuras contratações.[11]
Em síntese, caso o item licitado, seja bem ou serviço, possua valor estimado superior a R$ 4.800.000,00 (quatro milhões e oitocentos mil reais), ou nas obras e serviços de engenharia também superiores ao aludido preço de referência, não se aplicam os benefícios previstos na Lei Complementar para as microempresas ou empresas de pequeno porte.
As microempresas ou empresas de pequeno porte poderão participar da licitação, mas não receberão qualquer benefício.
A Nova Lei de Licitações, em confluência com a jurisprudência do TCU,[12] ainda dispõe que a obtenção de benefícios fica limitada às microempresas e às empresas de pequeno porte que, no ano-calendário de realização da licitação, ainda não tenham celebrado contratos com a Administração Pública cujos valores somados extrapolem a receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte, devendo o órgão ou entidade exigir do licitante declaração de observância desse limite no certame.[13]
Destaca-se, por fim, que nas contratações com prazo de vigência superior a 1 (um) ano, será considerado o valor anual do contrato na aplicação das regras dispostas acima.[14]
[1] CF/1988. Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: […] XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
[2] CF/1988. Art. 146. Cabe à lei complementar: I – dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar; III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: […] d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239. […] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: […] IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. […] Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.
[3] Lei nº 8.666/1993. Art. 5o-A. As normas de licitações e contratos devem privilegiar o tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte na forma da lei.
[4] Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006: […] Art. 1o Esta Lei Complementar estabelece normas gerais relativas ao tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, […].
[5] Ressalvado o disposto no art. 3º, §§ 9o-A, 10 e 12, da Lei Complementar nº 123/2006: […] § 9o-A. Os efeitos da exclusão prevista no § 9o dar-se-ão no ano-calendário subsequente se o excesso verificado em relação à receita bruta não for superior a 20% (vinte por cento) do limite referido no inciso II do caput. § 10. A empresa de pequeno porte que no decurso do ano-calendário de início de atividade ultrapassar o limite proporcional de receita bruta de que trata o § 2o estará excluída do tratamento jurídico diferenciado previsto nesta Lei Complementar, bem como do regime de que trata o art. 12 desta Lei Complementar, com efeitos retroativos ao início de suas atividades. […] § 12. A exclusão de que trata o § 10 não retroagirá ao início das atividades se o excesso verificado em relação à receita bruta não for superior a 20% (vinte por cento) do respectivo limite referido naquele parágrafo, hipótese em que os efeitos da exclusão dar-se-ão no ano-calendário subsequente.
[6] Lei Complementar nº 123/2006: […] art. 3º […] § 3º O enquadramento do empresário ou da sociedade simples ou empresária como microempresa ou empresa de pequeno porte bem como o seu desenquadramento não implicarão alteração, denúncia ou qualquer restrição em relação a contratos por elas anteriormente firmados.
[7] TCU – Acórdão nº 745/2014 – Plenário
[8] TCU – Acórdão nº 1702/2017 – Plenário
[9] TCU – Acórdão nº 1370/2015 – Plenário
[10] Lei nº 14.133/2021. Art. 4º Aplicam-se às licitações e contratos disciplinados por esta Lei as disposições constantes dos arts. 42 a 49 da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006.
[11] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 90.
[12] TCU – Acórdão nº 1370/2015 – Plenário
[13] Lei 14.133/2021: […] art. 4º […] § 2º A obtenção de benefícios a que se refere o caput deste artigo fica limitada às microempresas e às empresas de pequeno porte que, no ano-calendário de realização da licitação, ainda não tenham celebrado contratos com a Administração Pública cujos valores somados extrapolem a receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte, devendo o órgão ou entidade exigir do licitante declaração de observância desse limite na licitação.
[14] Lei 14.133/2021: […] art. 4º […] § 3º Nas contratações com prazo de vigência superior a 1 (um) ano, será considerado o valor anual do contrato na aplicação dos limites previstos nos §§ 1º e 2º deste artigo.