A habilitação é a fase da licitação em que a Administração Pública verifica se as empresas que pretendem firmar contrato cumprem os requisitos legais mínimos. Na análise da documentação sobre qualificação econômico-financeira deve ser examinada a boa situação financeira das licitantes para execução do objeto a ser contratado.
Legislação aplicável
Em licitações regidas pela Lei nº 8.666/1993, conforme art. 31, inc. I, exige-se como um dos requisitos para qualificação econômico-financeira a apresentação do balanço patrimonial, acompanhado de demonstrações contábeis, do último exercício social, exigíveis e apresentados na forma da lei.
Já nas licitações realizadas sob a égide da Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações), nos termos do art. 69, inc. I, houve atualização desse requisito específico de habilitação, requerendo-se “balanço patrimonial, demonstração de resultado de exercício e demais demonstrações contábeis dos 2 (dois) últimos exercícios sociais”.
As regras para elaboração e aprovação do balanço patrimonial de sociedade limitada estão previstas no Código Civil. O art. 1.065 do diploma estabelece a obrigatoriedade de elaboração do balanço patrimonial e do balanço de resultado econômico ao término de cada exercício social. Ocorre que a aprovação das contas da administração (inclusive os balanços) depende de deliberação dos sócios (art. 1.071, inc. I), que deve ocorrer em assembleia geral, até 4 (quatro) meses depois do término do exercício social (art. 1.078, inc. I).
Para sociedade por ações, submetidas aos ditames da Lei nº 6.404/1976, também existe a obrigação de elaborar o balanço patrimonial no fim de cada exercício social (art. 176, inc. I), sendo que a aprovação deve ocorrer em assembleia-geral nos 4 (quatro) primeiros meses subsequentes (art. 132, inc. I).
Em complemento, foram criados o Sistema Público de Escrituração Digital – SPED e a Escrituração Contábil Digital – ECD para a escrituração contábil no âmbito da Receita Federal de empresas com regime tributário pelo lucro real e algumas pelo lucro presumido, a depender da parcela de lucros ou dividendos superior ao valor da base de cálculo do imposto sobre a renda.[1]
Sobre o prazo para registro da ECD no SPED, inicialmente, a Instrução Normativa nº 1.420/2013 da Receita Federal definiu como termo final o último dia útil do mês de junho. Em sequência, a Instrução Normativa nº 1.594/2015 do órgão estabeleceu o encerramento do prazo como o último dia útil do mês de maio do ano seguinte.[2]
Prazo para apresentação do balanço patrimonial
Nesse contexto, surgiu controvérsia sobre o prazo para apresentação do balanço patrimonial nas licitações, nas seguintes vertentes:
a) 30 da abril, do ano subsequente ao término do exercício, nos termos do Código Civil e para empresas não obrigadas a apresentar a ECD, principalmente as submetidas ao regime do simples nacional;
b) 31 de maio, do ano subsequente ao término do exercício, nos termos da Instrução Normativa nº 1.594/2015 da Receita Federal, para empresas obrigadas a apresentar a ECD.
Critério da hierarquia de normas
É consagrado em nosso ordenamento jurídico o ideário da hierarquia entre normas, com base na pirâmide de Kelsen, que apresenta a Constituição no topo, como norma fundamental; em segundo patamar as espécies normativas primárias (leis complementares, leis ordinárias, decretos-lei), que retiram o fundamento de validade da Constituição; e em terceiro patamar as espécies normativas secundárias (decretos, portarias, instruções e regulamentos).
Por esse critério, em caso de conflito entre as normas, prevalece a que tiver maior hierarquia, tendo em vista que possui maior densidade normativa. Aplicando-se a métrica no caso concreto, tem-se que a regra do Código Civil – lei ordinária e espécie normativa primária – prepondera sobre a Instrução Normativa da Receita Federal – ato regulamentar e espécie normativa secundária.
Dessa forma, o prazo aplicável para apresentação do balanço patrimonial nas licitações seria 30 da abril do ano subsequente ao término do exercício.
Oscilação da jurisprudência do TCU sobre o tema
A partir da criação do SPED e da ECD, a jurisprudência do Tribunal de Contas da União – TCU vem oscilando sobre o tema, em posições antagônicas.
Em 2014, por meio do Acórdão nº 1999/2014, o plenário da Corte de Contas fixou o entendimento de que seria aplicável o prazo de 30 de abril, previsto no Código Civil, considerando que instrução normativa não teria fundamento para alterar o prazo da lei ordinária. Destacou-se ainda que a Instrução Normativa nº 1.420/2013 da Receita, ao prever o prazo de 30 de junho na época, dispôs especificamente sobre os fins operacionais da transmissão da ECD:
8. Verifica-se, portanto, que, em até quatro meses (30 de abril), devem estar aprovados o balanço patrimonial e os demais demonstrativos contábeis. Como a sessão para abertura das propostas ocorreu no dia 20/5/2014, já era exigível nessa data a apresentação dos citados documentos referentes ao exercício de 2013.
9. Alega a representante que a “validade dos balanços” se findaria em 30/6/2014, por força da Instrução Normativa da Receita Federal 1.420/2013.
10. Tal normativo institui a Escrituração Contábil Digital (ECD), que deverá ser transmitida ao Sistema Público de Escrituração Digital (Sped), pelas pessoas jurídicas obrigadas a adotá-la. Segundo o art. 3º dessa norma, ficam obrigadas a adotar a ECD as pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real ou presumido (o que seria o caso da representante). O art. 5º da IN estabelece que a ECD será transmitida até o último dia útil do mês de junho do ano seguinte ao que se refira a escrituração.
11. Entende a representante que os dispositivos acima mencionados exigiriam que o INSS, em maio de 2014, ainda aceitasse como “válido” o balanço e as demonstrações relativas a 2012, uma vez que não teria se encerrado o prazo estabelecido no art. 5º da referida norma, que é 30 de junho.
12. Esse entendimento não merece prosperar. O prazo para aprovação do balanço é 30/4/2014, segundo disposto no art. 1078 do Código Civil. Evidentemente, uma instrução normativa não tem o condão de alterar esse prazo, disciplinado em lei ordinária. O que a IN faz é estabelecer um prazo para transmissão da escrituração contábil digital, para os fins operacionais a que ela se destina.
13. Conclui-se, portanto, que o ato do pregoeiro de inabilitar a representante, que apresentou a documentação referente ao exercício de 2012, foi correto, embasado no edital do certame e na legislação pertinente. Assim, deve ser considerada improcedente a representação formulada pela empresa Cibam Engenharia Eirelli.
Posteriormente, no Acórdão nº 472/2016 – Plenário, a Corte modificou o entendimento no sentido de que o prazo do Código Civil teria relação apenas com a deliberação da assembleia de sócios, sobre o balanço patrimonial, e não com a sua publicação. Dessa forma, seria aplicável o prazo do último dia de junho na época, para as empresas vinculadas ao SPED, conforme a Instrução Normativa nº 1.420/2013 da Receita:
3.2. Em relação à alínea “b”, foi verificado que o prazo previsto no Código Civil (30/4/2015) refere-se à deliberação da assembleia de sócios sobre o balanço patrimonial e não a sua publicação. O fato de a empresa apresentar documentação referente ao exercício de 2013 em 22/5/2015 encontra respaldo na Instrução Normativa 1.420/2013 da Receita Federal do Brasil, pois, para as empresas que adotam o regime de tributação vinculado ao Sistema Público de Escrituração Digital – Sped, a exigência para apresentação dos documentos relativos ao exercício imediatamente anterior só se inicia a partir de 30 de junho do exercício atual;
Ainda no mesmo ano de 2016, por meio do Acórdão 119/2016 – Plenário, a Corte revisitou o tema, conferindo primazia à regra prevista no edital, considerado como a “lei” do procedimento licitatório. O Tribunal entendeu que deveriam ser observados outros princípios, como o da razoabilidade e o da economicidade, diante de formalismo exagerado e da possibilidade de reconhecer como válidas ambas as datas, tanto a do Código Civil, quanto a da Instrução Normativa da Receita Federal:
20. Sustento entendimento diverso justamente por não vislumbrar qualquer tipo de conflito entre o conteúdo do art. 1.078 do Código Civil e o teor do art. 5º da Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil (RFB) 1.420/2013, como sugere o sobredito acórdão. Ao revés, homenageando a interpretação sistêmica do ordenamento jurídico vigente, defendo que ambos os dispositivos se prestam justamente a complementar o art. 31, inciso I, da Lei 8.666/93, conferindo-lhe assim eficácia plena, senão vejamos.
21. De acordo com o referido art. 31, inciso I, da Lei 8.666/93, é legítimo exigir do licitante, para fim de qualificação econômico-financeira, “balanço patrimonial e demonstrações contábeis do último exercício social, já exigíveis e apresentados na forma da lei(…)”.
22. Entendo que a expressão acima empregada “na forma da lei” refere-se tão somente ao termo “apresentados”, e não à expressão “já exigíveis”. Significa dizer que a lei disciplinará a apresentação do “balanço patrimonial e demonstrações contábeis do último exercício social”, estando esse disciplinamento hoje contemplado no Código Civil (Lei 10.406/2002), especificamente em seu art. 1.078 – o qual deixa assente que tal apresentação será feita para que a assembleia dos sócios da sociedade limitada delibere sobre os documentos que lhe foram apresentados –, nada discorrendo sobre a exigibilidade dessa documentação para fim de participação em processo licitatório. Atente-se para o conteúdo desse dispositivo legal:
[…]
23. A rigor, à luz do Caput art. 1.078 do Código Civil, a deliberação da assembleia dos sócios sobre o “balanço patrimonial e o de resultado econômico” é que deverá ocorrer “nos quatro meses seguintes ao término do exercício social” (até 30/4), sendo que a apresentação propriamente dita de tais documentos perante os “sócios que não exerçam administração” terá de ser feita “até trinta dias antes da data marcada para a assembleia”, portanto nos três meses seguintes ao término do exercício social (até 30/3).
24. Por seu turno, é a Instrução Normativa SRF 1.420/2013 que, implicitamente, oferece resposta para a questão temporal da exigibilidade do “balanço patrimonial e demonstrações contábeis do último exercício social” nas licitações. Isso porque o seu art. 5º dispõe que a Escrituração Contábil Digital (ECD), a qual compreende a versão digital dos balanços e demais documentos contábeis (art. 2º), e cuja adoção é obrigatória para as pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real ou no lucro presumido (art. 3º), deverá ser transmitida ao Sistema Público de Escrituração Digital (Sped) até o último dia útil do mês de junho do ano seguinte ao que se refira a escrituração.
25. A propósito, de acordo com o art. 2º do Decreto 6.022/2007 (redação dada pelo Decreto 7.979/2013), o Sped é o “instrumento que unifica as atividades de recepção, validação, armazenamento e autenticação de livros e documentos que integram a escrituração contábil e fiscal dos empresários e das pessoas jurídicas, inclusive imunes ou isentas, mediante fluxo único, computadorizado, de informações”.
26. Em apertada síntese, somente quando a convocação de licitante – que tem como regime de tributação o lucro real ou o lucro presumido – para apresentação da documentação prevista no art. 31, inciso I, da Lei 8.666/93 ocorrer após o último dia útil do mês de junho de determinado exercício social, a documentação a ser apresentada no certame relativa ao “balanço patrimonial e demonstrações contábeis do último exercício social” será realmente a pertinente ao exercício social anterior àquele em que fora efetivada a referida convocação.
27. Em que pese a tese defendida nos parágrafos precedentes, reconheço que a inexistência de uma jurisprudência consolidada no âmbito desta Corte de Contas pode ser suprida pelo próprio responsável pela condução do processo licitatório, por meio de inserção de cláusula editalícia que indique expressamente o exercício a que deve se referir o balanço patrimonial a ser apresentado para fins de comprovação da capacidade econômico-financeira dos licitantes. Com essa medida, o instrumento convocatório supriria quaisquer dúvidas dos interessados acerca do assunto, razão pela qual proponho ao colegiado dar ciência ao TRT do ocorrido para que tal lacuna possa ser preenchida no edital que vier a ser publicado.
Observa-se, portanto, que diante da ausência de pacificação de entendimento sobre o tema do prazo para apresentação do balanço patrimonial, a própria Corte de Contas aceita os dois tipos de prazo e sugere que o critério seja elucidado no instrumento convocatório.
Possibilidade de prorrogação do prazo
No cenário de aplicação do prazo previsto em instrução normativa da Receita Federal, importante destacar que ocasionalmente existe a possibilidade de prorrogação do prazo, a depender de autorização normativa específica.
Em 2021, por exemplo, em relação às empresas com obrigatoriedade de apresentar a ECD no ano-calendário de 2020, houve prorrogação excepcional do encerramento do prazo para o último dia útil do mês de julho de 2021, nos termos da Instrução Normativa nº 2023/2021 da Receita.
Conclusão
Em termos estritamente jurídicos, o critério da hierarquia entre as normas tem grande relevância, vez que trata do cumprimento da legalidade em essência. A circunstância de um ato regulamentar, editado por um único agente político, sobrepor-se a uma lei, que é resultado de aprovação no Legislativo, não se coaduna com o Estado Democrático de Direito.
No caso, se não for possível compatibilizar as duas regras sobre o prazo do balanço patrimonial, deve preponderar o marco de 4 (quatro) meses subsequentes ao término do exercício do Código Civil.
No âmbito das licitações, o embate pode ser evitado mediante disposição no edital, definindo o parâmetro a partir do qual será exigida a apresentação do balanço patrimonial referente ao exercício anterior. A vinculação ao instrumento convocatório se apresenta como melhor solução de ordem prática, com respaldo legal.
Apesar da oscilação na jurisprudência do TCU, o caminho atual parece ser por um entendimento complementar entre as regras de prazo para validade do balanço, sendo último dia de abril para empresas que não estão sujeitas à ECD e último dia de maio para as que se encontram nesse regime contábil; o que, necessariamente, precisará ser estabelecido no instrumento convocatório.
Em caso de omissão no edital, os licitantes devem questionar o órgão público, mediante pedido de esclarecimento ou impugnação, sobre o critério utilizado para validade do balanço patrimonial e cumprimento do requisito de habilitação. Como a resposta da Administração é vinculativa, incorpora-se ao edital, passando a ser regra clara para a competição.
A solução com maior segurança jurídica para as empresas que buscam contratar com a Administração Pública é se organizar contabilmente para cumprir o prazo do Código Civil (30 de abril), mesmo aquelas que estão no lucro real ou lucro presumido qualificado. Essa opção afasta qualquer risco de que seja alegado descumprimento da legislação de habilitação.
Em todo caso, é prudente que o julgamento da habilitação seja pautado pelos princípios do formalismo moderado, verdade material, economicidade, razoabilidade e proporcionalidade. A finalidade das regras de habilitação é garantir que a licitante tenha os requisitos mínimos para participar da disputa e executar o futuro contrato. E a finalidade do requisito de apresentação do balanço patrimonial é possibilitar a aferição da capacidade econômico-financeira de executar o contrato.
Por fim, a alteração legislativa promovida pela Nova Lei de Licitações, no sentido de exigir balanço patrimonial dos dois últimos exercícios, apesar de permitir avaliação de consistência dos lançamentos, não parece eliminar a discussão do momento de validade do balanço referente ao último exercício, que segue dimensionado pela legislação civil e pode ser dirimido no edital.
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[1] Art. 3º da Instrução Normativa nº 1.777/2017 da Receita Federal: “Art. 3º Deverão apresentar a ECD as pessoas jurídicas e equiparadas obrigadas a manter escrituração contábil nos termos da legislação comercial, inclusive entidades imunes e isentas. § 1º A obrigação a que se refere o caput não se aplica: I – às pessoas jurídicas optantes pelo Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Simples Nacional), instituído pela Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006; II – aos órgãos públicos, às autarquias e às fundações públicas; III – às pessoas jurídicas inativas, assim consideradas aquelas que não tenham realizado, durante o ano-calendário, atividade operacional, não operacional, patrimonial ou financeira, inclusive aplicação no mercado financeiro ou de capitais as quais devem cumprir as obrigações acessórias previstas na legislação específica; IV – às pessoas jurídicas imunes e isentas que auferiram, no ano-calendário, receitas, doações, incentivos, subvenções, contribuições, auxílios, convênios e ingressos assemelhados cuja soma seja inferior a R$ 1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil reais) ou ao valor proporcional ao período a que se refere a escrituração contábil; e V – às pessoas jurídicas tributadas com base no lucro presumido que não distribuíram, a título de lucro, sem incidência do Imposto sobre a Renda Retido na Fonte (IRRF), parcela de lucros ou dividendos superior ao valor da base de cálculo do imposto sobre a renda, diminuída dos impostos e contribuições a que estiver sujeita.”
[2] Instrução Normativa nº 1.594/2015 da Receita Federal: “Art. 5º A ECD deve ser transmitida ao Sistema Público de Escrituração Digital (Sped), instituído pelo Decreto nº 6.022, de 22 de janeiro de 2007, até o último dia útil do mês de maio do ano seguinte ao ano-calendário a que se refere a escrituração”.